domingo, 3 de abril de 2016

DA INEXISTÊNCIA DE RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NOS CASOS DE TERCEIRIZAÇÃO DE SERVIÇOS MEDIANTE LICITAÇÃO


A administração pública vem sendo, reiteradamente, chamada a integrar a lide na justiça do trabalho, sob o justificativa de que o ente público possui responsabilidade subsidiária em relação aos encargos trabalhista da empresa contratada. Justifica tal atitude, a existência da súmula 331 do TST, a  expor nos seguintes termos:

Súmula nº 331 do TST

CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. LEGALIDADE (nova redação do item IV e inseridos os itens V e VI à redação) - Res. 174/2011, DEJT divulgado em 27, 30 e 31.05.2011 

I - A contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, formando-se o vínculo diretamente com o tomador dos serviços, salvo no caso de trabalho temporário (Lei nº 6.019, de 03.01.1974). 
                            (...)
                        
V - Os entes integrantes da Administração Pública direta e indireta respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei n.º 8.666, de 21.06.1993, especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora. A aludida responsabilidade não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada. 

Todavia, falta à memória da justiça do trabalho, que existe norma específica que trata das contratações pela administração pública, inclusive com referência expressa sobre os casos de inadimplência de encargos trabalhistas. Como pode se depreender do artigo 71 da lei 8666/93 a seguir descrito:

Art. 71.  O contratado é responsável pelos encargos trabalhistas, previdenciários, fiscais e comerciais resultantes da execução do contrato.
§ 1o  A inadimplência do contratado, com referência aos encargos trabalhistas, fiscais e comerciais não transfere à Administração Pública a responsabilidade por seu pagamento, nem poderá onerar o objeto do contrato ou restringir a regularização e o uso das obras e edificações, inclusive perante o Registro de Imóveis. (grifos nossos)

Logo, pela interpretação literal da norma, a administração pública não teria qualquer tipo de responsabilidade sobre dívidas de natureza trabalhista por parte da contratada, nem mesmo de forma subsidiária, uma vez que a lei nada dispõe a este respeito.
A interpretação da súmula da justiça do trabalho visa oferecer um sentido diferente ao artigo 71 da lei 8666/93, alcançado aquilo que a norma definitivamente não quis tratar. Talvez por alcançar a qualquer custo os princípios da justiça do trabalho, especialmente o Princípio da Proteção.
Porém, há ponderações a serem feitas. Primeiro, que o conteúdo de uma súmula do TST não pode se sobrepor ao de uma lei, ainda mais quando esta lei é específica, como é o caso do artigo 71 da lei 8666/93, que trata especificamente sobre os casos de contratações da administração pública.
Segundo, como já fora salientado, a norma em comento não quis atribuir qualquer tipo de responsabilidade à administração, pública. Logo, se a lei primária não quis atribuir tal ônus ao ente público, quiçá uma súmula do TST.
Terceiro, uma vez que a administração pública segue por excelência o Princípio da legalidade, só se pode realizar aquilo que for determinado por lei. Logo, atribuir uma responsabilidade ao ente público mesmo sem a previsão legal, constitui afronta ao referido princípio da administração pública, sendo clara a hipótese, até mesmo de manejo de recurso extraordinário perante o STF.
Também não se pode deixar de fora desta discussão, o fato de que o referido artigo foi objeto de ação direta de constitucionalidade a saber, ADC n°16, julgada no ano de 2010.
Os ministros do STF decidiram, por maioria de votos, que a norma objeto de discussão seria constitucional, e que a justiça trabalhista não poderia prever aquilo que não foi previamente definido na norma.
Interessantes os julgados e os votos dos ministros sobre o caso. Alguns deles, como é o caso da ministra Carmém Lúcia, afirma de forma bastante lúcida, clara e convincente, que o fato de se imputar responsabilidade subsidiária sobre a administração pública estaria se onerando duplamente o ente em questão: primeiramente, no momento de contratação da empresa, no qual a administração pública é OBRIGADA, a exigir qualificação fiscal, trabalhista e previdenciária da empresa que almeja firmar pacto com a administração pública; e num segundo momento, quando do inadimplemento da empresa contratante.
Ora, a simples falta de fiscalização da administração pública não deve ser motivo suficiente de imputação de responsabilidade ao ente público. Seria uma “quase responsabilidade solidária” disfarçada de subsidiária. Aliás, nem subsidiária seria, conforme pode se depreender do entendimento do STF.
A administração já realizou o seu “dever” de fiscalização no momento da contratação da empresa, quando exige sua regularização trabalhista. Agora, ter de ser obrigada a pagar verbas trabalhistas de uma empresa inadimplente, isto não deve ser acatado pela justiça trabalhista, culminando em ofensa da legislação federal e específica sobre o tema, e também agressão à decisão do Pretório Excelso.
Também deve-se ponderar, que uma vez que a empresa contratante recebe da administração pública para cumprir com seus propósitos e almejar lucro, a inadimplência daquela não pode redundar em responsabilidade sobre a segunda, sob o manto de falta de fiscalização.
Repita-se: a fiscalização da administração só é aferível no momento de contratação da empresa, em sede de contrato administrativo, pois é dever da administração zelar pela coletividade ao escolher uma empresa que esteja em dia com todas as suas obrigações fiscais, trabalhistas, previdenciárias, além da necessária qualificação técnica.
Por fim, em momento posterior, no bojo de problemas trabalhistas entre a empresa e o seu empregado, não deve incidir qualquer tipo de responsabilidade sobre a administração pública, pois além de todos os argumentos acima traçados, a relação que se instaura é privativa entre empregador e empregado. Ou seja, não foi a administração pública responsável pela contratação do empregado, ela não manteve este contato inicial, portanto, não deve ser ela a responsável, ainda que subsidiariamente por eventual sucumbência trabalhista.
Abaixo, a ementa de julgamento proferida pelo STF e o voto de alguns ministros:

RESPONSABILIDADE CONTRATUAL. Subsidiária. Contrato com a administração pública. Inadimplência negocial do outro contraente. Transferência consequente e automática dos seus encargos trabalhistas, fiscais e comerciais, resultantes da execução do contrato, à administração. Impossibilidade jurídica. Consequência proibida pelo art., 71, § 1º, da Lei federal nº 8.666/93. Constitucionalidade reconhecida dessa norma. Ação direta de constitucionalidade julgada, nesse sentido, procedente. Voto vencido. É constitucional a norma inscrita no art. 71, § 1º, da Lei federal nº 8.666, de 26 de junho de 1993, com a redação dada pela Lei nº 9.032, de 1995. (STF - ADC: 16 DF, Relator: Min. CEZAR PELUSO, Data de Julgamento: 24/11/2010, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe-173 DIVULG 08-09-2011 PUBLIC 09-09-2011 EMENT VOL-02583-0).

(...)

Contudo, eventual descumprimento pela Administração Pública do seu dever legal de fiscalizar o adimplemento de obrigações trabalhistas por seu contrato, se for o caso, não se impõe a automática responsabilidade subsidiária da entidade da Administração Pública por esse pagamento, pois não é capaz de gerar vínculo de natureza trabalhista entre a pessoa estatal e o empregado da empresa particular. Principalmente, se tanto ocorrer, isso não se insere  no campo da inconstitucionalidade do dispositivo em causa.

(...)

Entendimento diverso resultaria em duplo prejuízo ao ente da Administração Pública, que, apesar de ter cumprido regularmente as obrigações previstas no contrato administrativo firmado, veria ameaçada sua execução e ainda teria de arcar com consequência do inadimplemento de obrigações trabalhistas pela empresa contratada.

Também é nesse sentido o argumento trazido pela Procuradoria do Município de São Paulo, de que “a empresa, tendo sido devidamente remunerada pela Administração Pública, não pode alegar não ter patrimônio para saldar suas dívidas em razão de prejuízos derivados do risco de sua atividade econômica (...). Se a empresa alegar não ter bens suficientes para satisfazer a execução, haverá fundamentos suficientes para que seja realizada a desconsideração da personalidade jurídica”.


A SENHORA MINISTRA CÁRMEM LÚCIA – Porque esse tipo de conduta quebra a estrutura inteira da Administração Pública, que, licita, contrata, a lei diz que não assumirá outras que não as obrigações contratuais e, depois, determinam que ela assuma duas vezes: ela pagou esse contratado que contratou de maneira equivocada e ainda o empregado que o contratado particular não pagou. A licitação então não valeu de nada, e depois o povo brasileiro ainda paga a segunda vez por esse trabalhador. Quer dizer, alguma coisa está muito errada. E se está errada neste nível, acho que há outras consequências, inclusive mandar apurar a responsabilidade desse que não fiscalizou, desse que licitou mal.



AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE 16
PROCED.: DISTRITO FEDERAL
RELATOR: MIN. CÉZAR PELUSO
REQTE. (S): GOVERNADOR DO DISTRITO FEDERAL
ADV. (A/S): PGDF – ROBERTA FRAGOSO MENEZES KAUFMANN E OUTRO (A/S)

Decisão: Após o voto do Senhor Ministro Cezar Peluso (Relator), que não conhecia da ação declaratória de constitucionalidade por não ver o requisito da controvérsia judicial, e o voto do Senhor Ministro Marco Aurélio, que a reconhecia e dava seguimento à ação, pediu vista dos autos o Senhor Ministro Menezes Direito. Ausentes, justificadamente, o Senhor Ministro Celso de Mello e a Senhora Ministra Ellen Gracie. Falaram pelo requerente, a Dra. Roberta Fragoso Menezes Kaufmann e, pela Advocacia-Geral da União, o Ministro José Antônio dias Toffoli. Presidência do Senhor Ministro Gilmar Mendes. Plenário, 10/09/2008.

Decisão: O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Relator, Ministro César Peluzo (Presidente), julgou procedente a ação. Contra o voto do Senhor Ministro Ayres Britto. Impedido o Senhor Ministro dias Toffoli. Plenário, 24/11/2010.


Ao decidir, a maioria dos ministros se pronunciou pela constitucionalidade do artigo 71 e seu parágrafo único, e houve consenso no sentido de que o TST não poderá generalizar os casos e terá de investigar com mais rigor se a inadimplência tem como causa principal a falha ou falta de fiscalização pelo órgão público contratante.
Logo, a responsabilidade subsidiária da administração pública, no entender dos votos proferidos, seria única e exclusivamente no momento da licitação e contratação, talvez por não ter exigido os requisitos essenciais de habilitação e qualificação da empresa contratante. Como nos dizeres da ministra, aquele que licita mal, suporta os encargos. Superadas estas preliminares, a responsabilidade subsidiária inexiste para o ente público, mesmo no fato da falta de fiscalização.

Desta feita, não há que se falar em responsabilidade subsidiária da Administração Pública por mera alegação de falta de fiscalização acerca da execução do contrato, e consequentemente a aplicação do inciso V, da Súmula 331 TST. 

Ana Luiza Albuquerque Kalil
Procuradora do Município - Prov, Efetivo
OAB/MG - 128.444

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