A administração pública vem sendo,
reiteradamente, chamada a integrar a lide na justiça do trabalho, sob o justificativa
de que o ente público possui responsabilidade subsidiária em relação aos
encargos trabalhista da empresa contratada. Justifica tal atitude, a existência
da súmula 331 do TST, a expor nos seguintes termos:
Súmula nº
331 do
TST
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS.
LEGALIDADE (nova redação do item IV e inseridos os itens V e VI à redação) -
Res. 174/2011, DEJT divulgado em 27, 30 e 31.05.2011
I - A contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, formando-se o vínculo diretamente com o tomador dos serviços, salvo no caso de trabalho temporário (Lei nº 6.019, de 03.01.1974).
(...)
V - Os entes integrantes da Administração
Pública direta e indireta respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do
item IV, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações
da Lei n.º 8.666, de 21.06.1993, especialmente na fiscalização do cumprimento
das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora.
A aludida responsabilidade não decorre de mero inadimplemento das obrigações
trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada.
Todavia, falta à memória da justiça do
trabalho, que existe norma específica que trata das contratações pela
administração pública, inclusive com referência expressa sobre os casos de
inadimplência de encargos trabalhistas. Como pode se depreender do artigo 71 da
lei 8666/93 a seguir descrito:
Art. 71. O contratado é responsável pelos
encargos trabalhistas, previdenciários, fiscais e comerciais resultantes da
execução do contrato.
§ 1o A
inadimplência do contratado, com referência aos encargos trabalhistas, fiscais
e comerciais não transfere à Administração Pública a responsabilidade por seu
pagamento, nem poderá onerar o objeto do contrato ou restringir a regularização
e o uso das obras e edificações, inclusive perante o Registro de Imóveis. (grifos nossos)
Logo, pela interpretação literal da norma,
a administração pública não teria qualquer tipo de responsabilidade sobre
dívidas de natureza trabalhista por parte da contratada, nem mesmo de forma
subsidiária, uma vez que a lei nada dispõe a este respeito.
A interpretação da súmula da justiça do
trabalho visa oferecer um sentido diferente ao artigo 71 da lei 8666/93,
alcançado aquilo que a norma definitivamente não quis tratar. Talvez por
alcançar a qualquer custo os princípios da justiça do trabalho, especialmente o
Princípio da Proteção.
Porém, há ponderações a serem feitas.
Primeiro, que o conteúdo de uma súmula do TST não pode se sobrepor ao de uma
lei, ainda mais quando esta lei é específica, como é o caso do artigo 71 da lei
8666/93, que trata especificamente sobre os casos de contratações da administração
pública.
Segundo, como já fora salientado, a norma
em comento não quis atribuir qualquer tipo de responsabilidade à administração,
pública. Logo, se a lei primária não quis atribuir tal ônus ao ente público,
quiçá uma súmula do TST.
Terceiro, uma vez que a administração
pública segue por excelência o Princípio da legalidade, só se pode realizar
aquilo que for determinado por lei. Logo, atribuir uma responsabilidade ao ente
público mesmo sem a previsão legal, constitui afronta ao referido princípio da
administração pública, sendo clara a hipótese, até mesmo de manejo de recurso
extraordinário perante o STF.
Também não se pode deixar de fora desta
discussão, o fato de que o referido artigo foi objeto de ação direta de
constitucionalidade a saber, ADC n°16, julgada no ano de 2010.
Os ministros do STF decidiram, por maioria
de votos, que a norma objeto de discussão seria constitucional, e que a justiça
trabalhista não poderia prever aquilo que não foi previamente definido na
norma.
Interessantes os julgados e os votos dos
ministros sobre o caso. Alguns deles, como é o caso da ministra Carmém Lúcia, afirma
de forma bastante lúcida, clara e convincente, que o fato de se imputar
responsabilidade subsidiária sobre a administração pública estaria se onerando
duplamente o ente em questão: primeiramente, no momento de contratação da
empresa, no qual a administração pública é OBRIGADA, a exigir qualificação
fiscal, trabalhista e previdenciária da empresa que almeja firmar pacto com a
administração pública; e num segundo momento, quando do inadimplemento da
empresa contratante.
Ora, a simples falta de fiscalização da
administração pública não deve ser motivo suficiente de imputação de
responsabilidade ao ente público. Seria uma “quase responsabilidade solidária”
disfarçada de subsidiária. Aliás, nem subsidiária seria, conforme pode se
depreender do entendimento do STF.
A administração já realizou o seu “dever”
de fiscalização no momento da contratação da empresa, quando exige sua regularização
trabalhista. Agora, ter de ser obrigada a pagar verbas trabalhistas de uma
empresa inadimplente, isto não deve ser acatado pela justiça trabalhista, culminando
em ofensa da legislação federal e específica sobre o tema, e também agressão à
decisão do Pretório Excelso.
Também deve-se ponderar, que uma vez que a
empresa contratante recebe da administração pública para cumprir com seus
propósitos e almejar lucro, a inadimplência daquela não pode redundar em
responsabilidade sobre a segunda, sob o manto de falta de fiscalização.
Repita-se: a fiscalização da administração
só é aferível no momento de contratação da empresa, em sede de contrato
administrativo, pois é dever da administração zelar pela coletividade ao
escolher uma empresa que esteja em dia com todas as suas obrigações fiscais,
trabalhistas, previdenciárias, além da necessária qualificação técnica.
Por fim, em momento posterior, no bojo de
problemas trabalhistas entre a empresa e o seu empregado, não deve incidir
qualquer tipo de responsabilidade sobre a administração pública, pois além de
todos os argumentos acima traçados, a relação que se instaura é privativa entre
empregador e empregado. Ou seja, não foi a administração pública responsável
pela contratação do empregado, ela não manteve este contato inicial, portanto,
não deve ser ela a responsável, ainda que subsidiariamente por eventual sucumbência
trabalhista.
Abaixo, a ementa de julgamento proferida
pelo STF e o voto de alguns ministros:
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL.
Subsidiária. Contrato com a administração pública. Inadimplência negocial do
outro contraente. Transferência consequente e automática dos seus encargos
trabalhistas, fiscais e comerciais, resultantes da execução do contrato, à
administração. Impossibilidade jurídica. Consequência proibida pelo art., 71, §
1º, da Lei federal nº 8.666/93. Constitucionalidade reconhecida dessa norma.
Ação direta de constitucionalidade julgada, nesse sentido, procedente. Voto
vencido. É constitucional a norma inscrita no art. 71, § 1º, da Lei federal nº
8.666, de 26 de junho de 1993, com a redação dada pela Lei nº 9.032, de 1995. (STF
- ADC: 16 DF, Relator: Min. CEZAR PELUSO, Data de Julgamento: 24/11/2010, Tribunal
Pleno, Data de Publicação: DJe-173 DIVULG 08-09-2011 PUBLIC 09-09-2011 EMENT
VOL-02583-0).
(...)
Contudo, eventual descumprimento pela
Administração Pública do seu dever legal de fiscalizar o adimplemento de
obrigações trabalhistas por seu contrato, se for o caso, não se impõe a
automática responsabilidade subsidiária da entidade da Administração Pública
por esse pagamento, pois não é capaz de gerar vínculo de natureza trabalhista
entre a pessoa estatal e o empregado da empresa particular. Principalmente, se
tanto ocorrer, isso não se insere no
campo da inconstitucionalidade do dispositivo em causa.
(...)
Entendimento diverso resultaria em
duplo prejuízo ao ente da Administração Pública, que, apesar de ter cumprido
regularmente as obrigações previstas no contrato administrativo firmado, veria
ameaçada sua execução e ainda teria de arcar com consequência do inadimplemento
de obrigações trabalhistas pela empresa contratada.
Também é nesse sentido o argumento
trazido pela Procuradoria do Município de São Paulo, de que “a empresa, tendo
sido devidamente remunerada pela Administração Pública, não pode alegar não ter
patrimônio para saldar suas dívidas em razão de prejuízos derivados do risco de
sua atividade econômica (...). Se a empresa alegar não ter bens suficientes
para satisfazer a execução, haverá fundamentos suficientes para que seja
realizada a desconsideração da personalidade jurídica”.
A SENHORA MINISTRA CÁRMEM LÚCIA –
Porque esse tipo de conduta quebra a estrutura inteira da Administração
Pública, que, licita, contrata, a lei diz que não assumirá outras que não as
obrigações contratuais e, depois, determinam que ela assuma duas vezes: ela
pagou esse contratado que contratou de maneira equivocada e ainda o empregado
que o contratado particular não pagou. A licitação então não valeu de nada, e
depois o povo brasileiro ainda paga a segunda vez por esse trabalhador. Quer
dizer, alguma coisa está muito errada. E se está errada neste nível, acho que
há outras consequências, inclusive mandar apurar a responsabilidade desse que
não fiscalizou, desse que licitou mal.
AÇÃO DECLARATÓRIA DE
CONSTITUCIONALIDADE 16
PROCED.: DISTRITO
FEDERAL
RELATOR: MIN. CÉZAR
PELUSO
REQTE. (S):
GOVERNADOR DO DISTRITO FEDERAL
ADV. (A/S): PGDF –
ROBERTA FRAGOSO MENEZES KAUFMANN E OUTRO (A/S)
Decisão: Após o voto
do Senhor Ministro Cezar Peluso (Relator), que não conhecia da ação
declaratória de constitucionalidade por não ver o requisito da controvérsia judicial,
e o voto do Senhor Ministro Marco Aurélio, que a reconhecia e dava seguimento à
ação, pediu vista dos autos o Senhor Ministro Menezes Direito. Ausentes,
justificadamente, o Senhor Ministro Celso de Mello e a Senhora Ministra Ellen
Gracie. Falaram pelo requerente, a Dra. Roberta Fragoso Menezes Kaufmann e,
pela Advocacia-Geral da União, o Ministro José Antônio dias Toffoli.
Presidência do Senhor Ministro Gilmar Mendes. Plenário, 10/09/2008.
Decisão: O Tribunal,
por maioria e nos termos do voto do Relator, Ministro César Peluzo
(Presidente), julgou procedente a ação. Contra o voto do Senhor Ministro Ayres
Britto. Impedido o Senhor Ministro dias Toffoli. Plenário, 24/11/2010.
Ao decidir, a maioria dos ministros se
pronunciou pela constitucionalidade do artigo 71 e seu parágrafo único, e houve
consenso no sentido de que o TST não poderá generalizar os casos e terá de
investigar com mais rigor se a inadimplência tem como causa principal a falha
ou falta de fiscalização pelo órgão público contratante.
Logo, a responsabilidade subsidiária da
administração pública, no entender dos votos proferidos, seria única e
exclusivamente no momento da licitação e contratação, talvez por não ter
exigido os requisitos essenciais de habilitação e qualificação da empresa contratante.
Como nos dizeres da ministra, aquele que licita mal, suporta os encargos.
Superadas estas preliminares, a responsabilidade subsidiária inexiste para o
ente público, mesmo no fato da falta de fiscalização.
Desta feita, não há que se falar em responsabilidade
subsidiária da Administração Pública por mera alegação de falta de fiscalização
acerca da execução do contrato, e consequentemente a aplicação do inciso
V, da Súmula 331 TST.
Ana Luiza Albuquerque Kalil
Procuradora do Município - Prov, Efetivo
OAB/MG - 128.444
Ana Luiza Albuquerque Kalil
Procuradora do Município - Prov, Efetivo
OAB/MG - 128.444
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